domingo, 11 de janeiro de 2009

Nosso Patriotismo

Uma matéria que vi na televisão me fez refletir, ela relatava acerca de uma proposta de um velho sociólogo, aqueles com barba grande e cara de intelectual, de mudar a bandeira brasileira. De início achei impossível tal idéia, ora, mudar a bandeira brasileira, nosso maior símbolo de patriotismo? Mas depois vi que tinha sentido essa idéia aparentemente louca. Explicava ele que quando da criação da bandeira, lá pelos anos de 1889, ela representava as características de nosso país, o que hoje, segundo ele, ela já não o faz, por isso a necessidade de mudança. Todavia, para evitar a reação dos mais conservadores, a mudança proposta não seria total, permaneceria o formato original da bandeira, haveria apenas pequenas mudanças para adaptá-la aos dias atuais. As mudanças se iniciariam no grande retângulo que é preenchido de verde. Este retângulo outrora representava nossas florestas. Pois bem, em vez de todo verde como foi criado, o retângulo passaria a ter apenas manchas verdes, já que hoje no Brasil de verde mesmo só a bandeira e o interior das cuecas de nossos parlamentares. As florestas brasileiras que ainda não desapareceram já estão a caminho. Dizia ele que o verde da bandeira representava a Mata Atlântica, que começou a ser massacrada no começo da colonização pela exploração de madeira, depois tendo de dar lugar as plantações de cana-de-açúcar e café, e agora, em seus últimos suspiros de vida, ela tem que disputar espaço com os edifícios que hoje estão no lugar onde antes eram imensas árvores centenárias, derrubadas em razão da especulação imobiliária. Afirmou ele ainda que o verde representava as Araucárias do sul do país que transformaram-se em madeira para móveis. O verde simbolizava a Mata Amazônica, que a cada dia tem o seu tamanho diminuído, seja pela exploração ilegal de madeira, seja para dar lugar a imensos latifúndios e à criação extensiva de gado. Ele me convenceu que não tinha sentido, portanto, de nossa bandeira ter um retângulo completamente verde se essa já não era a nossa realidade. A segunda mudança seria no losango amarelo. Ele representava as nossas riquezas minerais. Afirmava o sociólogo que há tempos não possuímos mais essas riquezas minerais, já que teriam sido entregues por completo aos portugueses quando da nossa colonização. O brilho do ouro que cegou a tantos. Além do mais, as riquezas que nosso país possui está concentrada nas mãos de uma pequena burguesia sanguessuga, não tendo sentido que a pintura continue uniforme como é hoje. De acordo com a nova proposta o amarelo ficaria apenas nos cantos do losango para representar assim a nossa má distribuição de renda, onde a maioria nada tem. A última mudança seria no círculo azul que representa nossos céus. O círculo passaria a ter pontos pretos em seu interior. Ora, já que o círculo representa nossos céus, devemos também representar a poluição que neles se encontram. Nas grandes cidades já não se vê mais o céu azul, nas manhãs vê-se apenas o cinza. O crescente número de veículos nas ruas e com eles os gases que são liberados dão uma nova cor aos nossos céus. Ficariam muito mais condizentes com a realidade os pontos pretos no globo azul. As mudanças se encerrariam aí, pois o resto está de acordo com a realidade do país. As estrelas que representam nossos estados e distrito federal espelham a realidade, estão elas separadas, sem nenhuma unidade, iguais a nossos estados membros, cada um buscando seu próprio brilho. Na bandeira nacional não há nada mais atual do que a “ordem e progresso” estampada. De origem positivista, quer dizer em outras palavras “povo quieto para que o país cresça”. Povo quieto, alienado, alheio a realidade. Atualíssima. Como diria Dom Pedro Casaldáliga, “chamo a ordem de mal e o progresso de mentira”. Essas mudanças, no entanto, não passarão deste texto, primeiro porque o velho sociólogo e sua proposta nunca existiram. Este é o país do faz de conta, onde fingi-se tudo, até as reportagens. Segundo porque as mudanças esbarrariam em um falso patriotismo. Admira-me o nosso amor à pátria, a defesa de nossa bandeira me deixa fascinado, fascinado por tamanha hipocrisia, uma vez que o nosso patriotismo se resume à bandeira nacional e, claro, ao futebol em tempos de copa do mundo. Vi uma matéria, essa sim eu vi mesmo, onde uma mulher seria processada por posar nua usando como adereço a bandeira nacional. Patriotismo mentiroso, esse é o nosso. Nossas florestas estão desaparecendo e com elas toda a sua biodiversidade, chegando ao ponto de outras nações sugerirem a internacionalização da Amazônia. Temos um dos piores índices de distribuição de renda do mundo, perdendo apenas para os países da África degradados pela guerra. Raros são os rios que em contato com a “civilização” ainda não estão poluídos. Não obstante continuamos ainda preocupados com a bandeira, uma bandeira que hoje se tornou mentirosa. Temos um patriotismo que não vê a miséria do país, que não vê a opressão de seu povo. É hora de revermos nosso patriotismo, revermos de que realmente podemos nos orgulhar e onde se está precisando de uma reforma verdadeiramente patriótica.
Será que apenas quando for derrubada a última árvore, poluído o último rio, morto o último peixe, é que o homem vai perceber que não poder comer dinheiro?

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Sementes de girassol, Frei Betto (adaptado)

Neste ano, fecharei a minha caixa de Pandora e farei passarinhar todos os bons propósitos que desafiam a minha fé. Recolherei num jardim de tulipas essa tristeza d'alma que definha o meu ego arrastado pela vaidade.
Neste ano, soterrarei de perdões o meu mal-querer e de afagos a sórdida tendência de apostar na desgraça alheia. Erguerei a minha taça à vitória do outro e brindarei de louvores as conquistas dos que invadem a minha reserva de caça. Serei dom e não dor. Neste ano, fecharei as asas da ambição e, vazio de desejos, cavarei túneis no mais profundo de mim mesmo para deixar fluir as águas da plenitude. Neste ano, desviarei o olhar da lascívia que esgarça o meu espírito e os ouvidos aos tambores que me impedem de dançar na contramão. Não buscarei senão os odores suaves da brisa matinal e darei ao meu paladar o que amarga a língua e adoça o espírito. Neste ano, porei em prática sábias lições de vida: pão que se guarda endurece o coração; a cabeça pensa onde os pés pisam; o contrário do medo não é a coragem, é a fé. Sairei à rua repleto de silêncio, grávido do ser que me transfigura em morada divina. Neste ano, segredarei aos peregrinos os três aforismos de meu bem-viver: Deus tem sabor de justiça; a vida trafega a bordo do paradoxo; a morte é verbo e não se conjuga no presente, é sempre pretérito ou futuro. Neste ano, espalharei em meu peito sementes de girassol e cobrirei a cabeça com ervas aromáticas, para que a minha pele transpire luz e a minha boca profira perfumes. Não me privarei de suculentas alegrias e só darei a meu corpo o que empanturra o espírito. Neste ano, cultivarei cada um de meus cabelos brancos, modelarei de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas que maquiam de sabedoria o meu rosto. Serei belo como o tronco nodoso de uma velha castanheira que, retorcida de braços, abraça o Sol para em seus pés irradiar sombras. Neste ano, tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e lavarei as portas de minha cidade para acolher em festa os que trazem boas novas. No contorno dos dias, amarrarei fitas brancas e escovarei a boca da noite até limpar a garganta de sonâmbulas aflições. Neste ano, não permitirei à língua servir de passarela ao mal-dizer, nem darei ouvidos a quem insiste em violar meu silêncio. Voarei sereno como os albatrozes que, todas as manhãs, impedem que o fragor das ondas fira a pele porosa das praias. Neste ano, não me deixarei iludir pelos profetas da desgraça, nem me hipnotizar pelos que pincelam de cores vivas os cemitérios. Ficarei atento ao olhar perplexo cravado no rosto encardido dos que suplicam uma côdea de pão e um gole de paz. Neste ano, trocarei minhas horas preciosas por horas ociosas e, recostado num banco de parque, darei milho aos pombos e cantarei laudes com os mendigos que, deitados na grama, escarnecem da agonia do tempo. Banharei a minha pele na lagoa pontilhada de moedas faiscantes de prata e, boca aberta sob o chafariz, beberei até embriagar-me de insensatez. Neste ano, violarei todas as regras da civilidade torpe que me engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do relógio que me escravizam ao ritmo implacável de minutos e segundos. Neste ano, serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade. Confessarei a mim mesmo os meus pecados e, crucificado numa roda gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem prenhes de vertigens. Neste ano, serei cidadão de um país governado por um cavaleiro que chegue montado num burrico e tenha as mãos calosas como quem cavou as entranhas da terra. Não darei lugar aos príncipes revestidos de palavras vãs, nem porei a minha confiança nos arautos surdos ao clamor dos desvalidos. Neste ano, farei de Deus o meu pai e o meu pão, e abrirei em laços o meu abraço, até transmutar solitários em solidários. Amarei sobre todas as coisas, para que a minha riqueza, despojada de bens, seja farta em afetos. Fecharei os olhos para ver melhor e, ao crepúsculo, serei consumido e consumado pelas chamas que ardem no lado avesso do meu ser.