segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Em processo discivilizatório

Na medida em que trilhamos o caminho dito civilizatório vê-se com mais clareza que percorremos pela estrada errada. Ao ver imagens de centenas de golfinhos sendo covardemente massacrados na ilha Feroe, Dinamarca, em um país “civilizado”, sinto a vontade premente de reverter esse processo e me “discivilizar”. A visão antropocêntrica que foi arraigada em nossa sociedade, principalmente a ocidental, têm nos levado para cada vez mais perto do abismo. Desde que o homem Europeu se auto-elegeu o sol de nossa civilização e colocou a razão laboral-capital como mola mestra do processo de desenvolvimento humano, afastando-se de uma visão transcendente da realidade e quebrando seus laços com a natureza, teve início o nosso processo de decadência. A busca desenfreada pelo lucro sem limites fez com que hoje nós ultrapassássemos em 30% o limite de auto-sustentabilidade do planeta Terra. Apenas um planeta para nós já não é mais suficiente. É como se estivéssemos trafegando em um carro que alcança a velocidade de 200Km e quiséssemos andar à 260Km, o resultado não seria outro, bateríamos o motor. Hoje nós batemos o motor do planeta Terra. Consumimos em pouco mais de duzentos anos o que a natureza custou bilhões de anos para construir. Fruto da busca pela super-produção de produtos inúteis que duram cada vez menos. Rasgamos os limites da terra, desde a procura desenfreada por minérios e recursos naturais, passando pela poluição gerada pelas indústrias e suas toneladas de lixo, chagando ao descarte dos produtos que usamos cada vez mais por menos tempo. Em contraste a essa busca lunática pelo lucro, segundo relatório da ONU, mais de 900 milhões de pessoas passam fome no mundo. Especialistas afirmam que a doença do futuro será a depressão, fruto do vazio existencial pregado pelo sociedade “civilizada”. Ao analisar essa realidade lembro das palavras do teólogo e filósofo nascido na Dinamarca (país do pobres golfinhos assassinados), Sören Kierkegaard,: “[A sociedade de hoje] é um navio que está nas mãos do cozinheiro de bordo; e as palavras transmitidas pelo auto-falante do comandante não dizem mais respeito à rota (que não mais interessa a ninguém), mas ao que se comerá amanhã”. Ao fazer essa afirmação o filósofo se referia a atual crise de valores que enfrentamos, fruto do culto à religião dualista capital-consumo, que nos impõe como norte apenas o consumir. Diante dessa conjuntura, urge a necessidade de engatar a marcha ré e buscar na sabedoria de nossos antepassados o caminho a seguir. É em nossas raízes não civilizadas, principalmente a indígena, que encontraremos a bússola capaz de nos guiar pelo caminho correto. Para isso, teremos que passar por um processo de “discivilização”, contrariando tudo que nos é imposto como civilizado. A volta à vida em comunidade, tão destruída pela sociedade do capital, talvez fosse o nosso primeiro passo nesse processo. Reaprender a viver em comunhão, compartilhar nossas tristezas e alegrias, riquezas materiais e espirituais, é algo que deve ser resgatado. Substituir a ideologia da competição pela cooperação, assim como nas aldeias indígenas é o primeiro passo. Devemos lembrar que estamos em um grande barco chamado Terra e que todos, queiramos ou não, teremos um destino comum. O outro ponto a ser revivido é a harmonia com a natureza. Os povos indígenas, ao contrário de nós, não encaram a natureza como um simples bem de consumo. Os índios e a natureza, para eles Pacha Mama (Mãe Terra), se confundem, formam uma só coisa, como nas palavras de CHANK'IN, ancião indígena Lacandon: “O que a gente da cidade não compreende é que as raízes de todos os seres vivo estão entrelaçadas. Quando uma árvore majestosa é derrubada, cai uma estrela do céu. Antes de se cortar uma árvore se deveria pedir licença ao guardião das estrelas”. Devemos destruir para sempre a idéia de dominação irracional que aprendemos quando criança e, através desse processo discivilizatório, retornar ao ponto de harmonia entre todos os seres vivos e não vivos. A opção por um vida simples, banhada pelo necessário, chamada de eco-simplicidade, é outra meta a ser atingida. Como disse Gandhi: É preciso viver mais simplesmente para que os outros simplesmente possam viver”. A sentença de decadência da humanidade foi decretada quando a primeira pessoa afirmou que iria ao Shopping fazer compras e assim acabar com sua tristeza. Rejeitar a alienação que nos é imposta de que a nossa felicidade está condicionada a aquisição que bens de consumo é algo urgente. Volver nossa felicidade para as coisas que realmente importam fará com que nos reencontremos com nós mesmos, já que separados pelo cotidiano vazio. Através de uma análise transcendental da realidade (que é outro ponto a ser resgatado) assim como os indígenas, atentaremos para a divindade que habita em cada um de nós e em todos os outros seres da natureza. Reconhecer nossas limitações terrenas abraçando o transcendente fará com que retornemos à harmonia com toda a criação e por fim perceber a existência de Deus nela, como afirmou Jesus no evangelho apócrifo de São Tomé escrito no século II: “Rache uma lasca de madeira e eu estarei lá, levante uma pedra e eu estarei lá”.

domingo, 13 de setembro de 2009

Frei tito - As próprias pedras gritarão

Começo aqui alguns textos relativos ao Frei Tito. Religioso dominicano que, por sua escolha pelo povo, foi toturado pela ditadura militar.Esse texto, escrito pelo próprio tito, fala sobre suas torturas nos porões da ditadura.
Este é o depoimento de um preso político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e Europeo.
Fui levado do presídio Tiradentes para a "Operação Bandeirantes", OB (Polícia do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: "Você agora vai conhecer a sucursal do inferno". Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do "pau-de-arara". O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. "Vai ter que falar senão só sai morto daqui", gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na "cadeira do dragão" (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao "pau-de-arara". Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz."Nosso assunto agora é especial", disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. "Quando venho para a OB - disse - deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo "não" que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber". Eram três militares na sala. Um deles gritou: "Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)". Quando respondi: "não sei" recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na subversão". Partiu para a ofensa moral: "Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?". Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento". Disse que a "Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca "para receber a hóstia sagrada". Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma "explicação". Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O "interrogatório" reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês". Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no "pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis". "Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: "o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos". Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a "gillete" para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: "Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos". No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: "A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo". Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era "uma estupidez" e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo"Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos" (2Cor, 8-9).Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.Frei Tito de Alencar Lima, OPFevereiro de 1970

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Loucuras municipais

É 07 de setembro de 2009. Dia da independência. Dia da pátria. Dia vergonhoso para a cidade de Mossoró. Estava tudo pronto para o desfile cívico. Exército, polícia, escolas, escoteiros e o grito dos excluídos, todos preparados para seguir em cortejo. Até que chega a informação de que o grito não entraria mais após os escoteiros, como devidamente combinado em reunião com o poder municipal e demais representantes das entidades que
participariam do desfile. Em uma reunião misteriosa composta apenas pelo gabinete da prefeita e a polícia, ficou decidido que o grito seria o último, ou seja, depois do exército, das polícias, dos bombeiros, dos escoteiros e de 70 escolas. A mensagem foi curta e grossa, ou o grito era o último, ou não entrava. Por que essa decisão em cima da hora? A resposta é simples: esvaziar o protesto. O grito sendo o último não haveria ninguém para vê-lo e ouvi-lo, todos já teriam ido embora, inclusive a prefeita. Essa foi a primeira “loucura municipal” do dia. A notícia causou revolta. Ora, tinha sido tudo discutido e combinado em reunião, o grito entraria depois dos escoteiros. Se quem manda é o poder autoritário do executivo, então para que reunião? As “loucuras municipais” seguiram, foi ordenado à polícia que, caso descumprissem essa ordem autoritária oriunda do gabinete do poder municipal, deveria haver repressão policial, como foi feito. Não faltaram empurrões, chingamentos (baderneiros foi o mais leve), coturnadas, enforcamentos, ameças de prisão (por qual crime ainda não consegui achar no código penal), gás de pimenta que machucou inclusive crianças que participavam do grito. O povo das ruas vaiava a atitude ditatorial. Era perceptível que alguns policiais não queriam fazer o que estavam fazendo, calar a voz do povo sofrido, viam que o protesto era legítimo, pois eram eles, os policiais, também do povo. Mas não faltaram aqueles que, saudosisticamente, sentiram aquela saudadezinha da ditadura militar, onde poderiam “descer a porrada na gentalha”, como foi muito foi ouvido durante o acontecimento, através de pronunciamentos oficiais e não oficiais da polícia. É triste ouvir das pessoas pagas para proteger o povo que “essas mundiça deveria ir toda presa”. Chegaram a dizer que os participantes do grito estavam armados. Essa foi mais uma “loucura municipal”. Engraçado como a falta de bom senso e argumentos levam à atitudes ridículas. O grito é um movimento que acontece há quinze anos em Mossoró e toda a América Latina, evento oficial da CNBB, espaço de denúncia das exclusões sociais, de cunho Cristão e pacifista. Incompatível qualquer atitude violenta por parte de qualquer participante do grito. Talvez quando falavam das armas se referissem à Bíblia, com a qual todos juntos rezamos e meditamos o sermão da montanha antes de entrarmos no desfile, essa sim é uma arma muito forte, pois atinge direto no coração e na consciência. Pois bem. Seria muito mais fácil, racional e democrático ter deixado o grito desfilar e denunciar como acontece há quinze anos, mas o poder executivo optou por suas “loucuras municipais” e deu no que deu. Aqui, neste país de Mossoró, só pode ser dito o que o poder executivo quer que seja dito, senão pimenta nos “zói”. Ter encerrado o desfile e se retirado foi algo triste para o currículo da prefeita. Por que será que ela não pode ouvir reivindicações do povo que a elegeu? Não sei responder. Muitos, embebedados pelo egoísmo ou amarrados politicamente, reprovaram o protesto. Talvez por não terem ninguém passando fome ou qualquer outra necessidade em casa. Mas é a vida. Nem todos estão dispostos a lutar por um outro mundo possível. Mas, apesar de tudo, o grito foi dado. O povo do tranquilim deu seu grito por dignidade humana, pois morar em casa de taipa, sem banheiro, sem agua encanada, sem energia elétrica, sem assistência médica (até a SAMU se nega a ir até lá) não da pra ficar calado. O povo do Jucurí também deu seu grito de sede, uma vez que sofre constantemente com a falta de agua. Foi ouvido também do grito dos trabalhadores rurais em terra que lutam pelo fim do latifúndio que expulsa o camponês de sua terra e degrada o meio ambiente. O grito das mulheres pelo fim da violência de gênero e desigualdade entre homens e mulheres também ecoou. O grito dos servidores municipais massacrados pelas “loucuras municipais” também foi ouvido. Foram tantos gritos...Uns de forma coletiva, outros individuais, outros, apesar de não serem excluídos deram um exemplo de amor ao próximo e emprestaram sua voz para aqueles que não podem gritar. O importante é que, todos juntos, demos um grito por justiça que ecoou por toda a cidade. Parabéns a todos e a todas que apoiaram o grito de forma direta ou indireta e deram esse exemplo de amor ao próximo, movimentos populares, igrejas, ONGs, sindicatos, comunidades carentes e tantos outros. Assim, do mesmo modo como no início do grito, onde fizemos uma oração, deixo aqui o trecho do sermão da montanha que nos impele a gritar cada vez mais alto: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”