terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ônibus, enxadas e a Mossoró do presente.

O relógio marcava 13:30. Um pé após o outro seguia em direção ao local onde esperaria o transporte coletivo. O sol estava à pino. Sentia-o tão próximo a minha cabeça que tinha a impressão de poder alcançá-lo com as mãos. Em que pese ser aquela a hora mais quente do dia, em Mossoró é o momento mais propício de se conseguir embarcar em um ônibus sem ter que esperar uma hora e meia. Nesse horário, se tiver sorte, passam até três ônibus dentro de uma mesma hora. Não é novidade que por essas bandas as coisas costumem funcionar às avessas, ora, com o sistema de transporte público não seria diferente. Em sua essência, o transporte público existe para servir ao povo. Em alguns casos, o poder público faz uma concessão para que empresar privadas o exerçam, mas obedecendo o mesmo princípio. Aqui , no entanto, é diferente. É o povo que serve ao transporte público. Os ônibus só transitam nos horários que lhes garantam lotação máxima e também para os bairros que obedeçam a essa lógica. Ônibus em fim de semana e feriado é artigo de luxo. Isso sem falar no preço das passagens, mais parece que Mossoró é uma metrópole. Pois bem. Enquanto me encaixava em uma sombra generosa, já que não contamos com pontos de ônibus, via do outro lado da rua dois senhores a serviço da prefeitura, aparentando bem mais idade do que deveriam ter, a ceifar a grama das sarjetas utilizando-se de enxadas num rítimo frenético. Parecia que o sol lhes era indiferente. Talvez por isso não usassem equipamento de proteção, salvo bonés com abas quebradas. Ou será que não usavam por simples falta mesmo? Enquanto, abraçado por uma sombra, brigava com o sol por ser tão cruel e perguntava a mim mesmo se seria necessário aqueles idosos estarem ali naquela hora. Já não bastava o simples fato de serem idosos trabalhando em um serviço tão desgastante, ainda tinham que estar ali na hora mais impiedosa do dia. Passados quarenta minutos de reflexão e espera, o ônibus não aparece. Me rendo ao sol e caminho de volta para casa. Deixo ao fundo apenas o ritimado das enxadas.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Em 31 de março de 1964, depois do golpe que derrubou o presidente João Goulart e empossou o General Castello Branco, tinha início o período de ditadura militar brasileira. Marcado pela censura à imprensa, pelos direitos fundamentais suprimidos, prisões arbitrárias, torturas e mortes, os anos de chumbo se estenderiam por longos 21 anos.

Época das grandes passeatas, da efervescência do movimento estudantil e das guerrilhas. Tempos de Brasil “ame-o ou deixe-o” e de “ninguém segura esse país”. Essa triste página do grande livro chamado Brasil escrita com ferro e sangue preenche o coração dos que viveram aquela época com um misto de tristeza e nostalgia, fazendo parte de um passado inglório que jamais deve ser esquecido.

Pelos tempos atuais, passadas décadas do golpe, saboreamos avanços e retrocessos em relação à feio passado. No campo democrático, talvez o maior avanço. Temos hoje, em que pese merecer várias ressalvas, um país livre. No campo dos direitos humanos, o maior retrocesso. É inadmissível em um país dito democrático as violações tais quais existem. O fato de haver democracia intensifica a culpa. Dentre tantas violações que poderia citar me detenho aqui à tortura. Herança de tempos sombrios, afogamentos, espancamentos, asfixias, choques elétricos em órgãos genitais, interrupção da alimentação por dias, retirada a frio de unhas, golpes nas plantas dos pés, aplicação de vinagre sobre ferimentos e outros, são práticas ainda comuns em delegacias, cadeias e penitenciárias de todo o país. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas divulgado no final de 2007, a tortura no Brasil é comum e sistemática, atingindo principalmente os presos jovens e negros. O relatório afirma ainda que raramente os policiais que abusam dos presos são considerados culpados. É peça de colecionador inquérito ou condenação de algum torturador.

Não necessitaríamos desta manifestação da ONU, relatando a existência de tortura nas cadeias brasileiras para termos ciência disso, a experiência cotidiana nos permite chegar a essa conclusão, pois tudo começa ainda na rua, onde simples revistas policiais se transformam em suplícios humilhantes. Chega ainda a espantar que a pena cominada ao crime de tortura, nos quase não conhecidos casos de condenação, seja a mesma do crime de furto qualificado. Ou seja, tanto faz arrombar um carro e furtar o CD player como introduzir fios eletrificados pela uretra de um homem, segundo a legislação brasileira os dois crimes terão a mesma pena, de dois e oito anos de prisão.

A existência permanente de sevícias é reflexo da impunidade dos torturadores do período ditatorial, bem como do silêncio e omissão popular nos dias atuais. Incorporando Pilatos lavamos nossas mãos enquanto centenas de pessoas são torturadas nas cadeias diariamente, o que nos faz cúmplices do horror. Em nenhum momento defendo a impunidade, luto outrossim pela justiça que tenho certeza não se faz pela tortura. Deixo por fim um poema de Frei Tito de Alencar, símbolo de resistência e utopia que a tortura não conseguiu calar: “Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. Quando os regatos límpidos de meu ser secarem / minh'alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagens distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. Todas as tardes, me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha oração. Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda angústia. Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio”.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Abro um olho em concorrência com o outro. Com a vista ainda um pouco embaraçada ergo meu corpo devagar com o auxílio dos cotovelos enquanto organizo as idéias. Está logo à frente da minha cama, em ritmo frenético, impaciente, dando voltas amiúde, continuamente o meu contrário, no mesmo lugar e da mesma forma da noite anterior. Foi quem por último lembro de ter avistado antes de dormir e é quem por primeiro me vem dar bom dia. É sempre assim. A cada manhã insiste em lembrar que estou mais velho e a cada manhã insisto em repetir que não me preocupo. Já não gosto de sua companhia. Não pela lembrança que acabo de mencionar, é a teimosia em correr que não me agrada. Prefiro o deguste arrastado, o que não raro procura me impedir. Umas vezes conseguindo, outras não. Criei entre nós um hiato. Cada qual com seu cada qual.

Em que pese meu desprezo, sua superioridade me constrange. Tudo conspira a seu favor. O sol que nasce e a maré que sobe. O sino que toca e o operário que sai. A fome que vem e a disposição que vai. Como prepostos seus a me intimidar.

Vez ou outra penso em reaproximação, mesmo sabendo que o distanciamento em verdade nunca aconteceu. Reconheço seus méritos. O prazer de uma vitória depende de sua existência. Mas seus deméritos a mim são mais flagrantes. Faz que sejamos concorrentes de nós mesmos. Ainda que ganhemos, seremos sempre também derrotados. Prefiro o profundo, não o raso. O dedilhado em vez do batido. O contemplado em detrimento do olhado.

Agora levanto. À mim a liberdade que somente há fora de ti. Tempo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Não, no chão não pode.

Essa semana tive a grande alegria de precisar ir à Caixa Econômica Federal. Isso para mim é sempre um grande prazer. Fui. Ao chegar peguei a ficha número 185. Fiquei, lógico, muito feliz com isso. Caminhei ao setor responsável para esperar (muito) a minha vez. Dado que o local de espera disponibilizava do montante extraordinário de cerca de vinte cadeiras para mais de 200 pessoas e todas as vinte cadeiras (TODAS) já estavam ocupadas, teria que esperar de pé. Mas resolvi, mesmo assim, de algum modo, cumprir o ditado, "esperar sentado". Depois de analisar as milhares de possibilidades que o banco me fornecia, me apareceu, assim como um oásis no deserto, um cantinho de parede com um design atraente, uma boa acústica, temperatura agradável e ótimos azulejos para encostar minha parte traseira. Fui até lá. Pronto, me sentei no chão. Senti assim o aconchego que o banco sempre me oferecera. Agora esperaria 184 pessoas serem atendidas em ótimo estilo. Infelizmente, assim como uma brisa fria por Mossoró, minha felicidade logo se foi. Não demorou muito para que um dos seguranças da agência (para minha surpresa muito bem educado) me informasse que eu não poderia ficar sentado ali no chão, o banco não permite, e que se o gerente me visse naquela situação iria me pedir para levantar. Fiquei alguns segundos parado. Tentei impor outro significado ao mosaico de palavras que me foi dirigido que não aquele que já tinha entendido. Olhei para o guarda, soltei algumas palavras entre sorrisos, retribuí sua boa educação, desconversei. Continuei sentado. Agora mais do que nunca. Baixou em mim o espírito de uma criança emburrada. A raiva que me abateu fez-me canalizar toda a força mecânica de meu corpo em direção ao chão para que tivesse a certeza que estava realmente ali sentado. Daí em diante se misturaram em minha cabeça interrogações a mim mesmo: "E não pode sentar no chão, vou sentar onde? Tenho que esperar em pé? E por quê não colocam mais cadeiras?" com a raiva nascida da situação e a vontade de que o gerente aparecesse para que, de forma freudiana, me explicasse o motivo de não ter cadeiras e mesmo assim não poder se sentar no aveludado chão. Em que pese a profecia do segurança, esperei algum tempo ali sentado sobre os meus confortáveis azulejos e o gerente não apareceu. Acho que não me viu. Creio que em razão da multidão que se acumulava no banco dificultando sua visão para os demais pontos da agência. Chegada a minha vez de ser atendido, tendo o ponteiro do relógio dado vários voltas em torno do corpo que o sustenta, levantei do chão frio e fui até o guichê. No caminho de retorno para casa fiquei a divagar o que diria o gerente ao me ver sentado naquele sacro-santo chão. Talvez entre centenas de outros motivos totalmente compreensíveis ele teria me dito: "Caro cliente, imagino que o senhor saiba que mesmo com a crise econômica mundial a Caixa obteve um lucro de cerca de R$ 3 milhões no ano de 2009, isso tudo devido às inúmeras tarifas pagas por nossos clientes, como o senhor. Sei que o número de cadeiras é reduzido por demais, sem falar no tempo de espera. Sei também que vocês clientes pagam tarifas caras por nossos serviços e na maioria das vezes o referido serviço não é prestado com a qualidade necessária, o que é uma afronta ao direito e dignidade dos senhores. Todavia, eu não tenho nada a ver com isso e quero que o senhor levante-se agora do chão pois atitudes como essa mancham a imagem de nosso querido banco, agradeço".

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

FELIZ 2010

Feliz Ano-Novo aos artesãos de utopias, cujas mãos calosas desenterram girassóis dos pântanos da ambiguidade; às mulheres garimpeiras de afetos recônditos, divas miraculosas do bem-querer gratuito; às crianças sobrevividas nos corações de todas as idades; e aos guardiões de silêncios meditativos. Feliz Ano-Novo aos magos da delicadeza e aos que tecem laços de fita com as linhas do tempo; aos auscultadores do rumor de anjos e aos portadores de altivez luminosa montados em cavalos de fogo. Feliz Ano-Novo aos peregrinos de trilhas desprovidas de obscuridade; aos catadores de conchas nas praias ensolaradas da saciedade ética; aos desatadores de nós nas dobras do espírito; aos arautos de alvíssaras e aos espantalhos do infortúnio. Feliz Ano-Novo a quem se debruça da janela da alma para contemplar o próprio alvorecer; aos navegantes cujas velas se movem graças ao sopro do Espírito; aos semeadores de horizontes translúcidos; às bordadeiras de ternura no solo pedregoso de nossas desventuras. Feliz Ano-Novo aos acampados no vasto território da insensatez, reféns de egos inflados; aos acrobatas de mirabolantes conjecturas, escravos de suas altissonantes ilusões; aos autores da incongruência cívica, inveterados jogadores do blefe. Feliz Ano-Novo aos corações seduzidos pelo toque do amor divino; aos voluntários da generosidade, sinalizadores de caminhos nas vias labirínticas de nossos desacertos; aos profetas inflexíveis à embriaguez da mesmice, intrépidos cultivadores da esperança. Feliz Ano-Novo aos confeiteiros de adocicados prenúncios entre tantas desilusões; aos artistas da sobriedade, avessos à ribalta da hipocrisia; aos ourives da beleza engravidada de densidade subjetiva; aos mestres da sabedoria impelidos pela brisa suave impregnada do gosto de mel. Feliz Ano-Novo aos filósofos desalfabetizados de erudição, atentos aos voos da inteligência a transcender a razão; aos adeptos da mística vazia de imagens e palavras; aos ciganos de Deus cujos passos percorrem as sendas mistéricas da amorosidade inefável. Feliz Ano-Novo a quem se recusa a proferir o discurso ácido da dessignificação do outro; aos habitantes de aldeias líricas, em cujo amanhecer soam cânticos benfazejos; aos eremitas do desconsolo, alimentados pelo Verbo que se faz carne; aos hábeis alpinistas da imaginação, em cujas artes a vida se transmuta em alegorias. Feliz Ano-Novo aos caçadores de minudências, atentos aos detalhes da gentileza; aos ourives da elegância, cujas palavras exalam fragrâncias perfumadas; às sentinelas do assombro, agraciadas pelo dom de identificar a vida como milagre; aos artífices da fantasia, transubstanciadores de nossas emoções mais telúricas. Feliz Ano-Novo a quem cala os despropósitos alheios, incapaz de transformar a própria língua em pedra de tropeço; aos velejadores de devaneios românticos, inebriados de poesia; aos arquitetos do futuro, dedicados ao projeto da cerimônia de núpcias da liberdade com a justiça. Feliz Ano-Novo aos artistas da insensatez capazes de imprimir à vida caráter lúdico; aos aplicados cavalheiros da filosofia do riso, dos quais emana o júbilo de viver; e aos aflitos acendedores de luminárias, discípulos indignados de Diógenes. Feliz Ano-Novo a quem trafega na contramão dos pusilânimes, entregue à ousadia de reinventar a existência após cada fracasso; e ao guarda do farol em pleno mar revolto, cujo facho de luz abre vias douradas na superfície das águas; e às mulheres de corações embalados pelo acalanto de Cupido. Feliz Ano-Novo aos olhos vigilantes ao ocaso ambiental, nos quais lágrimas são ressecadas pela fuligem de chaminés lucrativas; aos desengaioladores de pássaros, destemidos pilotos de voos alucinados; e aos serviçais da gratuidade, militantes do altruísmo compassivo. Feliz Ano-Novo a quem teve um ano infeliz, ferido em dores e lágrimas, atolado em desesperanças e sendas obscuras - queira Deus que agora possa resgatar o melhor de si, religar-se ao Transcendente e fazer do amor a razão de seu renascer em vida. Frei Betto