sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Passeio Socrático - Frei Betto

Ao viajar pelo Oriente mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelo produz felicidade?' Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!' Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa? Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizi­nho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais... A palavra hoje é 'entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, calçar este tênis, ­ usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba­ precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose. O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse. Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shoppings centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald... Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático. ' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz !

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Quem não sabia? Eu já sabia, só não imaginava que seria tão rápido. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e outras potências mundiais, entre elas o Japão e a China, anunciaram que não assinariam nenhum acordo vinculante sobre mudanças climáticas em Copenhague, Dinamarca. O mundo esperava por um resultado positivo desta conferência que substituiria o protocolo de Kyoto e traçaria novas metas para o futuro da terra. A questão ambiental já não é mais encarada como uma loucura de ambientalistas, como há vinte anos atrás. É notório, até para os mais intransigentes à causa, que a terra está doente. Em pouco mais de trezentos anos conseguimos destruir o que o planeta demorou bilhões para construir. Hoje produzimos 30% a mais do que a terra é capaz. É como se andássemos numa velocidade de 260Km em um veículo que tem a potência de apenas 200Km. Procuramos produzir infinitamente em um mundo de recursos finitos. Escolhas erradas construíram um mundo errado. Apenas um esforço conjunto de todos os países do globo, principalmente as potências econômicas, vez que são as principais poluidoras, poderá encaminhar nosso futuro por outras veredas, que não a do desastre.
Todavia, tal como Kyoto, os EUA, que são os principais poluidores do globo, se negaram, antecipadamente, a assinar um acordo conjunto sobre a causa ambiental e o futuro do planeta. Para se ter uma idéia, os americanos são responsáveis por ¼ da poluição atual. Se todas as pessoas do globo consumissem como um americano, precisaríamos de quatro planetas terra. Sempre sustentei a tese de que a vitória de Obama na corrida presidencial americana, negro e com concepções diferentes dos presidentes anteriores, seria também uma vitória para humanidade. Mas sempre fazia a ressalva de que não poderíamos taxá-lo como salvador da humanidade. Foi um avanço? Sim. Mas ele vai sempre por em primeiro lugar a questão econômica americana. Logo após a vitória de Obama ao prêmio Nobel, que achei totalmente equivocada, o presidente americano enviou mais centenas de soldados para sua “guerra pela democracia” no Oriente Médio. Engraçado como alguns passam toda a sua vida lutando por uma causa, para no final serem reconhecidos. Ele, ainda verde na conjuntura mundial, sem ter dado nenhum avanço significativo pela paz entres os povos, saiu com o prêmio da paz. Essa história que alguns defendem, afirmado que o prêmio serviu de incentivo, também não cola. Se fosse deste modo, daríamos também o prêmio para Osama Bin Laden, assim o incentivaríamos a deixar a sua “guerra santa” de lado.
Mais um vez os Estados Unidos não estão dispostos a deixar de lado o American way of life pelo bem de Gaia, da Pacha Mama, do planeta Terra.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Em processo discivilizatório

Na medida em que trilhamos o caminho dito civilizatório vê-se com mais clareza que percorremos pela estrada errada. Ao ver imagens de centenas de golfinhos sendo covardemente massacrados na ilha Feroe, Dinamarca, em um país “civilizado”, sinto a vontade premente de reverter esse processo e me “discivilizar”. A visão antropocêntrica que foi arraigada em nossa sociedade, principalmente a ocidental, têm nos levado para cada vez mais perto do abismo. Desde que o homem Europeu se auto-elegeu o sol de nossa civilização e colocou a razão laboral-capital como mola mestra do processo de desenvolvimento humano, afastando-se de uma visão transcendente da realidade e quebrando seus laços com a natureza, teve início o nosso processo de decadência. A busca desenfreada pelo lucro sem limites fez com que hoje nós ultrapassássemos em 30% o limite de auto-sustentabilidade do planeta Terra. Apenas um planeta para nós já não é mais suficiente. É como se estivéssemos trafegando em um carro que alcança a velocidade de 200Km e quiséssemos andar à 260Km, o resultado não seria outro, bateríamos o motor. Hoje nós batemos o motor do planeta Terra. Consumimos em pouco mais de duzentos anos o que a natureza custou bilhões de anos para construir. Fruto da busca pela super-produção de produtos inúteis que duram cada vez menos. Rasgamos os limites da terra, desde a procura desenfreada por minérios e recursos naturais, passando pela poluição gerada pelas indústrias e suas toneladas de lixo, chagando ao descarte dos produtos que usamos cada vez mais por menos tempo. Em contraste a essa busca lunática pelo lucro, segundo relatório da ONU, mais de 900 milhões de pessoas passam fome no mundo. Especialistas afirmam que a doença do futuro será a depressão, fruto do vazio existencial pregado pelo sociedade “civilizada”. Ao analisar essa realidade lembro das palavras do teólogo e filósofo nascido na Dinamarca (país do pobres golfinhos assassinados), Sören Kierkegaard,: “[A sociedade de hoje] é um navio que está nas mãos do cozinheiro de bordo; e as palavras transmitidas pelo auto-falante do comandante não dizem mais respeito à rota (que não mais interessa a ninguém), mas ao que se comerá amanhã”. Ao fazer essa afirmação o filósofo se referia a atual crise de valores que enfrentamos, fruto do culto à religião dualista capital-consumo, que nos impõe como norte apenas o consumir. Diante dessa conjuntura, urge a necessidade de engatar a marcha ré e buscar na sabedoria de nossos antepassados o caminho a seguir. É em nossas raízes não civilizadas, principalmente a indígena, que encontraremos a bússola capaz de nos guiar pelo caminho correto. Para isso, teremos que passar por um processo de “discivilização”, contrariando tudo que nos é imposto como civilizado. A volta à vida em comunidade, tão destruída pela sociedade do capital, talvez fosse o nosso primeiro passo nesse processo. Reaprender a viver em comunhão, compartilhar nossas tristezas e alegrias, riquezas materiais e espirituais, é algo que deve ser resgatado. Substituir a ideologia da competição pela cooperação, assim como nas aldeias indígenas é o primeiro passo. Devemos lembrar que estamos em um grande barco chamado Terra e que todos, queiramos ou não, teremos um destino comum. O outro ponto a ser revivido é a harmonia com a natureza. Os povos indígenas, ao contrário de nós, não encaram a natureza como um simples bem de consumo. Os índios e a natureza, para eles Pacha Mama (Mãe Terra), se confundem, formam uma só coisa, como nas palavras de CHANK'IN, ancião indígena Lacandon: “O que a gente da cidade não compreende é que as raízes de todos os seres vivo estão entrelaçadas. Quando uma árvore majestosa é derrubada, cai uma estrela do céu. Antes de se cortar uma árvore se deveria pedir licença ao guardião das estrelas”. Devemos destruir para sempre a idéia de dominação irracional que aprendemos quando criança e, através desse processo discivilizatório, retornar ao ponto de harmonia entre todos os seres vivos e não vivos. A opção por um vida simples, banhada pelo necessário, chamada de eco-simplicidade, é outra meta a ser atingida. Como disse Gandhi: É preciso viver mais simplesmente para que os outros simplesmente possam viver”. A sentença de decadência da humanidade foi decretada quando a primeira pessoa afirmou que iria ao Shopping fazer compras e assim acabar com sua tristeza. Rejeitar a alienação que nos é imposta de que a nossa felicidade está condicionada a aquisição que bens de consumo é algo urgente. Volver nossa felicidade para as coisas que realmente importam fará com que nos reencontremos com nós mesmos, já que separados pelo cotidiano vazio. Através de uma análise transcendental da realidade (que é outro ponto a ser resgatado) assim como os indígenas, atentaremos para a divindade que habita em cada um de nós e em todos os outros seres da natureza. Reconhecer nossas limitações terrenas abraçando o transcendente fará com que retornemos à harmonia com toda a criação e por fim perceber a existência de Deus nela, como afirmou Jesus no evangelho apócrifo de São Tomé escrito no século II: “Rache uma lasca de madeira e eu estarei lá, levante uma pedra e eu estarei lá”.

domingo, 13 de setembro de 2009

Frei tito - As próprias pedras gritarão

Começo aqui alguns textos relativos ao Frei Tito. Religioso dominicano que, por sua escolha pelo povo, foi toturado pela ditadura militar.Esse texto, escrito pelo próprio tito, fala sobre suas torturas nos porões da ditadura.
Este é o depoimento de um preso político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e Europeo.
Fui levado do presídio Tiradentes para a "Operação Bandeirantes", OB (Polícia do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: "Você agora vai conhecer a sucursal do inferno". Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do "pau-de-arara". O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. "Vai ter que falar senão só sai morto daqui", gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na "cadeira do dragão" (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao "pau-de-arara". Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz."Nosso assunto agora é especial", disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. "Quando venho para a OB - disse - deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo "não" que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber". Eram três militares na sala. Um deles gritou: "Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)". Quando respondi: "não sei" recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na subversão". Partiu para a ofensa moral: "Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?". Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento". Disse que a "Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca "para receber a hóstia sagrada". Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma "explicação". Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O "interrogatório" reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês". Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no "pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis". "Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: "o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos". Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a "gillete" para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: "Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos". No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: "A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo". Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era "uma estupidez" e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo"Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos" (2Cor, 8-9).Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.Frei Tito de Alencar Lima, OPFevereiro de 1970

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Loucuras municipais

É 07 de setembro de 2009. Dia da independência. Dia da pátria. Dia vergonhoso para a cidade de Mossoró. Estava tudo pronto para o desfile cívico. Exército, polícia, escolas, escoteiros e o grito dos excluídos, todos preparados para seguir em cortejo. Até que chega a informação de que o grito não entraria mais após os escoteiros, como devidamente combinado em reunião com o poder municipal e demais representantes das entidades que
participariam do desfile. Em uma reunião misteriosa composta apenas pelo gabinete da prefeita e a polícia, ficou decidido que o grito seria o último, ou seja, depois do exército, das polícias, dos bombeiros, dos escoteiros e de 70 escolas. A mensagem foi curta e grossa, ou o grito era o último, ou não entrava. Por que essa decisão em cima da hora? A resposta é simples: esvaziar o protesto. O grito sendo o último não haveria ninguém para vê-lo e ouvi-lo, todos já teriam ido embora, inclusive a prefeita. Essa foi a primeira “loucura municipal” do dia. A notícia causou revolta. Ora, tinha sido tudo discutido e combinado em reunião, o grito entraria depois dos escoteiros. Se quem manda é o poder autoritário do executivo, então para que reunião? As “loucuras municipais” seguiram, foi ordenado à polícia que, caso descumprissem essa ordem autoritária oriunda do gabinete do poder municipal, deveria haver repressão policial, como foi feito. Não faltaram empurrões, chingamentos (baderneiros foi o mais leve), coturnadas, enforcamentos, ameças de prisão (por qual crime ainda não consegui achar no código penal), gás de pimenta que machucou inclusive crianças que participavam do grito. O povo das ruas vaiava a atitude ditatorial. Era perceptível que alguns policiais não queriam fazer o que estavam fazendo, calar a voz do povo sofrido, viam que o protesto era legítimo, pois eram eles, os policiais, também do povo. Mas não faltaram aqueles que, saudosisticamente, sentiram aquela saudadezinha da ditadura militar, onde poderiam “descer a porrada na gentalha”, como foi muito foi ouvido durante o acontecimento, através de pronunciamentos oficiais e não oficiais da polícia. É triste ouvir das pessoas pagas para proteger o povo que “essas mundiça deveria ir toda presa”. Chegaram a dizer que os participantes do grito estavam armados. Essa foi mais uma “loucura municipal”. Engraçado como a falta de bom senso e argumentos levam à atitudes ridículas. O grito é um movimento que acontece há quinze anos em Mossoró e toda a América Latina, evento oficial da CNBB, espaço de denúncia das exclusões sociais, de cunho Cristão e pacifista. Incompatível qualquer atitude violenta por parte de qualquer participante do grito. Talvez quando falavam das armas se referissem à Bíblia, com a qual todos juntos rezamos e meditamos o sermão da montanha antes de entrarmos no desfile, essa sim é uma arma muito forte, pois atinge direto no coração e na consciência. Pois bem. Seria muito mais fácil, racional e democrático ter deixado o grito desfilar e denunciar como acontece há quinze anos, mas o poder executivo optou por suas “loucuras municipais” e deu no que deu. Aqui, neste país de Mossoró, só pode ser dito o que o poder executivo quer que seja dito, senão pimenta nos “zói”. Ter encerrado o desfile e se retirado foi algo triste para o currículo da prefeita. Por que será que ela não pode ouvir reivindicações do povo que a elegeu? Não sei responder. Muitos, embebedados pelo egoísmo ou amarrados politicamente, reprovaram o protesto. Talvez por não terem ninguém passando fome ou qualquer outra necessidade em casa. Mas é a vida. Nem todos estão dispostos a lutar por um outro mundo possível. Mas, apesar de tudo, o grito foi dado. O povo do tranquilim deu seu grito por dignidade humana, pois morar em casa de taipa, sem banheiro, sem agua encanada, sem energia elétrica, sem assistência médica (até a SAMU se nega a ir até lá) não da pra ficar calado. O povo do Jucurí também deu seu grito de sede, uma vez que sofre constantemente com a falta de agua. Foi ouvido também do grito dos trabalhadores rurais em terra que lutam pelo fim do latifúndio que expulsa o camponês de sua terra e degrada o meio ambiente. O grito das mulheres pelo fim da violência de gênero e desigualdade entre homens e mulheres também ecoou. O grito dos servidores municipais massacrados pelas “loucuras municipais” também foi ouvido. Foram tantos gritos...Uns de forma coletiva, outros individuais, outros, apesar de não serem excluídos deram um exemplo de amor ao próximo e emprestaram sua voz para aqueles que não podem gritar. O importante é que, todos juntos, demos um grito por justiça que ecoou por toda a cidade. Parabéns a todos e a todas que apoiaram o grito de forma direta ou indireta e deram esse exemplo de amor ao próximo, movimentos populares, igrejas, ONGs, sindicatos, comunidades carentes e tantos outros. Assim, do mesmo modo como no início do grito, onde fizemos uma oração, deixo aqui o trecho do sermão da montanha que nos impele a gritar cada vez mais alto: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Eco-simplicidade - Leonardo Boff

O que se opõe à nossa cultura de excessos e complicações é a vivência da simplicidade, a mais humana de todas as virtudes, presente em todas as demais. A simplicidade exige uma atitude de anti-cultura pois vivemos enredados em todo tipo de produtos e de propagandas. A simplicidade nos desperta a viver consoante nossas necessidades básicas. Se todos perseguissem esse preceito, a Terra seria suficiente para todos. Bem dizia Gandhi:”temos que aprender a viver mais simplesmente para que os outros simplesmente possam viver”.
A simplicidade sempre foi criadora de excelência espiritual e de liberdade interior. Henry David Thoreau(+1862) que viveu dois anos em sua cabana na floresta junto a Walden Pond, atendendo estritamente às necessidades vitais, recomenda incessantemente em seu famoso livro-testemunho: Walden ou a vida na floresta: “simplicidade, simplicidade, simplicidade”. Atesta que a simplicidade sempre foi o apanágio de todos os sábios e santos. De fato, extremamente simples eram Buda, Jesus, Francisco de Assis, Gandhi e Chico Mendes entre outros.
Como hoje tocamos já nos limites da Terra, se quisermos continuar a viver sobre ela, precisamos seguir o evangelho da eco-simplicidade, bem resumida nos três “erres” propostos pela Carta da Terra:”reduzir, reutilizar e reciclar” tudo o que usamos e consumimos. Trata-se de fazer uma opção pela simplicidade voluntária que é um verdadeiro caminho espiritual. Esta eco-simplicidade vive de fé, de esperança e de amor. A fé nos faz entender que nosso trabalho, por simples que seja, é incorporado ao trabalho do Criador que em cada momento ativa as energias que produzem o processo de evolução.
A esperança nos assegura que se as coisas tiveram futuro no passado, continuarão a ter no presente. A última palavra não a terá o caos mas o cosmos. Para os cristãos, o fim bom já está garantido, pois alguém de nós, Jesus e Maria, foram introduzidos corporalmente no seio da Trindade.
A eco-simplicidade nos faz descobrir o amor como a grande força unitiva do universo e de Gaia. Esse amor faz com que todos os seres convivam e se complementem. Na modernidade, nós nos imaginávamos o sujeito do pensamento e a Terra o seu objeto. A nova cosmologia nos afirma que a Terra é o grande sujeito vivo que através de nós sente, ama, pensa, cuida e venera. Consequentemente, importa pensarmos como Terra, sentirmos como Terra, amarmos como Terra pois, na verdade, somos Terra, espécie homo, feito de húmus, de terra boa e fértil.
Ao sentirmo-nos Terra, vivemos uma experiência de não-dualidade que é expressão de uma radical simplicidade. Algo da montanha, do mar, do ar, da árvore, do animal, do outro e de Deus está em nós. Formamos o grande Todo. Uma moderna legenda dá corpo a estas reflexões:
Certa feita, um jovem iniciante na eco-simplicidade, foi visitado, em sonho, pelo Cristo ressuscitado e cósmico. Este o convidou para caminharem juntos pelo jardim. Depois de andarem por longo tempo, observando, encantados, a luz que se filtrava por entre as folhas, perguntou o jovem: "Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, disseste, certa feita, que voltarias um dia com toda a tua pompa e com toda a tua glória. Está demorando tanto esta tua volta! Quando, finalmente, retornarás, de verdade, Senhor"? Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Senhor respondeu: "Meu irmão, quando para ti, minha presença no universo e na natureza for tão evidente quanto a luz que ilumina este jardim; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando não precisares pensar mais nela nem fazeres perguntas como esta que fizeste, então, meu irmãozinho querido, eu terei retornado com toda a minha pompa e com toda a minha gloria”.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Infeliz aniversário

Hoje completa-se 45 anos do golpe militar que depôs o presidente João Goulart (jango) e colocou os militares no poder. Infeliz página desse livro chamado Brasil. Época de torturas, políticos, estudantes e religiosos mortos ou desaparecidos, imprensa censurada. Época em que os estudantes realmente eram estudantes e faziam valer o que aprendiam nos bancos universitários e que os religiosos viveram o evangelho em sua plenitude, inclusive dando sua própria vida. Época das guerrilhas, época de Dom Helder, época de "Brasil ame-o ou deixe-o", época de "ninguém segura esse país". Época das grandes passeatas. Época dos choques elétricos e do pau-de-arara. Época das grandes composições. Enfim, época que passou e nunca deve ser esquecida. Nem as monstruosidades que a sede de poder pode causar, nem a memória dos mártires que nos mostraram que vale a pena viver e morrer pela utopia.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Gaia

Renuncio a qualquer credo que imprime em mim a vivência de apenas metade de meu ser Nego-me a aceitar a idéia de uma existência que teima em não estampar em seus átrios a indagação fundamental "por quê?" Afasto-me, outrossim, da transcendência que me aliena e da imanência que me materializa Teimo em não aceitar a espiritualidade anti-evangélica que reduz tudo a mim mesmo, esquecendo-me do oprimido Repudio de igual forma a ideologia que me intitula de único e dominador Espero, enfim, como espera a esperança, que no meu profundo não haja nada além de desejos loucos do tudo, como vontades tolas de uma criança Insisto num pensamento crítico que dê respostas aos meus devaneios Hoje, de uma vez por todas, quero o transcendente imanente que une sem rodeio o hoje e o sempre Anseio não mais pelo amor falado, em meu dia-a-dia apenas impera o amor vivido Aceito apenas o ambiente completo, não me contento mais com o meio Em meu mosaico de pensamentos apenas se encaixa a idéia de ser parte de um todo a qual chamamos de GAIA.

A dor de cabeça de joãozinho

Joãozinho acorda sua mãe aos berros: - Mããããeeee, tô doente. - Doente? De quê menino? pergunta a mãe preocupada. - Tô doente de dor de cabeça, mãe. - De dor de cabeça? Mas dor de cabeça não é doença meu filho. - É doença sim, ta doendo muito, eu quero remédio pra ficar bom. - Olha filho, dor de cabeça não é doença, é apenas o sintoma de alguma doença. - Não quero saber mãe, é doença sim, e eu quero remédio pra ficar bom logo. - Você vai tomar o remédio agora e a dor vai desaparecer por enquanto, mas logo vai voltar. A gente tem que ir ao médico para saber de que realmente você ta doente filho. - Nãããooo mãe, médico não, eu quero ficar bom agora, se for pro médico vai demorar muitoooo. - Mas é isso filho, vai demorar um pouquinho, mas em compensação a gente vai descobrir qual sua doença e a dor de cabeça que é só um sintoma não vai... - Eu quero ficar bom agoraaaa, dor de cabeça é uma doença sim, me dá o remédio mãe. Interrompe joãzinho sua mãe aos berros. - Tudo bem filho, tudo bem, se é assim que você quer. Na manhã seguinte a história se repete. Ganha um piro-cóptero quem adivinhar quem é Joãozinho nessa história. Quem pensou no Brasil acertou. Mas por quê o Brasil? Você que não ganhou o piro-cóptero me pergunta. Explicar-lhe-ei meu caro. Nós aqui desta querida terra de Santa Cruz, por vários motivos, dentre eles históricos e culturais, estamos acostumados a procurar soluções fáceis e rápidas para nossos problemas, que na maioria das vezes não resolvem nada. Somos portanto esse Joãzinho da história. E você me pergunta ainda, e o que é então a dor de cabeça cara pálida? Olhaê, estamos nos entendendo. Boa pergunta. A dor de cabeça é o que está na moda nas passarelas de nossos tele-jornais, a famosa violência. Fala-se demais de quanto o nosso país está violento, é assalto daqui, é morte de lá. Porém continuamos pensando como Joãozinho, achando que a violência é um mal, esquecendo que ela é na verdade o sintoma de toda uma conjuntura social adversa. A violência não existe por si só, ela é fruto de todo um sistema opressor. A sua gênese está diretamente ligada à desigualdade social. Imaginemos uma criança que nasce na favela de nome Léco. Léco é o sétimo de nove filhos de dona Francisca, que veio do interior buscar a sorte na cidade grande. Os cinco primeiros filhos de dona Francisca são de Raimundo, que morreu na fila do hospital, até hoje não se sabe por qual motivo. Os outros dois filhos, inclusive Leco, são de pais diferentes. O pai de Léco, que só se conhece pelo apelido, Faísca, está preso. Dona Francisca hoje divide seu tempo entre cuidar das crianças e seu trabalho de diarista que lhe dá parte de seu sustento. Leco desistiu de estudar logo cedo, não por falta de vontade, mas por necessidade, ele queria ser professor ou jogador de futebol. Tinha que trabalhar na rua pra ajudar sua mãe, seus irmãos e seus sobrinhos, inclusive o filho de sua irmã Lara de treze anos que está grávida pela segunda vez. Ele começou engraxando sapatos, mas logo desistiu, o que ganhava não compensava. Passou então a fazer malabares em um sinal de trânsito, mas também não deu certo, as nobres senhoras tinham medo de serem assaltadas por Leco. Foi então que conheceu “cabeça”. Cabeça tinha a história parecida com a sua, foi portanto muito fácil eles se entenderem. Cabeça lhe deu alto estima, um trabalho, lhe mostrou a dignidade. Leco mudou de ídolos, não eram mais Romário e o Batman, agora era só seu amigo cabeça. Sua mãe de início não gostou da idéia, mas depois do aparelho de DVD e da máquina de lavar mudou de opinião. Quanto mais Leco ganhava importância, lhe apareciam inimigos, mas disso foi fácil cuidar, seu amigo cabeça lhe ajudou. Leco nunca vacilou numa parada, exceto no dia em que foi traído por cabeça, que temia o seu sucesso. Leco, que tinha dúvidas se queria ser jogador de futebol ou professor, hoje está enterrado numa vala como indigente. Uma criança não nasce querendo ser bandido, assaltante. O traficante Leco um dia foi o menino Leco humilhado nos semáforos da vida. Disso nunca poderemos esquecer. Sempre surge um alienado de plantão pra dizer: “isso é ilusão, pra vencer na vida é só querer, tem um primo de um primo meu que nasceu na favela e hoje é advogado”. É verdade que este cara é um vencedor, foi mostrado um caso, mas posso listar milhões que não conseguiram, devemos analisar o caso pela regra e a regra infelizmente é a exclusão. Tudo isso me parece com a história do aprendiz de feiticeiro que, deixado pelo mestre em casa para que fizesse a faxina, num truque de mágica encantou a vassoura para que ela fizesse tudo sozinha. Só que tinha um problema, o aprendiz de feiticeiro sabia encantar a vassoura, mas não tinha aprendido ainda a desencantar. Aconteceu que quando o mestre chegou já não existia casa, a vassoura trabalhou sem parar até levar a casa ao chão. É o que acontece com a nossa sociedade, soubemos criar todo este sistema desigual, mas não sabemos acabar com ele. A desigualdade social levou à pobreza do povo que, auxiliado pelo sistema consumista, gera toda a violência que existe.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Não é tão simples assim...

A polêmica sobre o caso da menina de Recife e seu arcebispo está rendendo. Para os de memória curta, relembremos o caso. Uma menina de nove anos de idade vinha sendo abusada sexualmente por seu padrasto há cerca de quatro anos o qual gerou uma gravidez de gêmeos. A mãe da menina, aconselhada pelos médicos, resolveu que sua filha deveria abortar, pois, segundo eles, uma criança de nove anos não resistiria a uma gravidez de duas crianças. O arcebispo de Recife, após a realização do aborto, excomungou a mãe da menina e a equipe de médicos que participaram do procedimento. Emergiram vozes de todos os lados a favor e contra a atitude do arcebispo. Eu, porém, acho que o caso não é tão simples assim. Dizer que em caso de gravidez indesejada deve-se permitir o aborto não faz nem um pouco parte de mim, mas também tomar a posição sem o mínimo de sensibilidade de afirmar que a atitude do arcebispo foi a única possível também não me atrai. São atitudes por demais simplistas que nos impedem de refletir. Vejo, pois, o caso por outra janela. Lembre-se de uma criança de nove anos que você conhece. Pense que você descobre que ela está grávida do padrasto. Melhor, pense que essa criança é sua filha e os médicos afirmam que ela não resistirá à gestação. O que fazer? Não estamos falando de uma mulher da classe média e já adulta que resolve abortar um bebê gerado de uma aventura noturna. Estamos falando de uma menina que ainda não tem seu corpo nem seu psicológico formado por completo e está grávida de seu padrasto. Ora, em uma mulher adulta percebemos o esforço para levar à frente uma gravidez de um único filho, quanto mais de dois. Estamos falando de uma mãe que descobre que seu companheiro engravidou sua filha e caso ela leve essa gestação à frente provavelmente morrerá.
Como falei, não é tão simples assim. Talvez o que tenha provocado maior revolta foi a fala do arcebispo quando afirmou que a atitude da mãe e dos médicos foi pior que o abuso sofrido pela criança. Completou ainda que, segundo o código canônico, o padrasto molestador não deveria ser excomungado. Códigos, mais códigos, me impressiono como teimamos em reduzir Deus à leis... Nunca devemos esquecer que viver não se resume a estar vivo. Aquela menina de nove anos também morreu, não existe mais. Fico triste porque os que defendem o arcebispo não tocam nesse assunto. Nem tampouco falam sobre as milhares de crianças que, em razão da fome, exploração sexual, violência, perdem suas inocências nos guetos e favelas de nosso país, não mais vivem, apenas sobrevivem. Eu concordo com a atitude da mãe? Na verdade não sei, mas entendo. Prefiro não me alinhar à corrente que defende a atitude do arcebispo baseada em catecismos e códigos. Creio que uma atitude de misericórdia num caso tão doloroso seria mais cristã. Entendo que um apoio a essa família seria mais útil que uma punição de excomunhão. Aliás, creio que a excomunhão em oportunidade alguma é a atitude mais cristã. O que eu faria se fosse a mãe da menina? Creio que o mesmo que ela fez, porém não tenho certeza. Os médicos falaram que nem a menina nem os bebês sobreviveriam, na minha visão leiga e parcial de medicina concordo, mas mesmo assim não me contento. Esse é um dos poucos assuntos que não consigo tomar posição definida, filio-me aos que ainda estão procurando a solução mais justa e rezam por esta avó que teve de abortar seus netos para sua filha não morrer e ainda foi excomungada. Aproveito o ensejo e publico este texto do Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, excomungamos...
Excomungamos todos aqueles que multiplicam sua renda através da especulação financeira, principais responsáveis pela crise atual, com todos os males que ela provoca, tornando mais miseráveis os pobres e mais poderosos os ricos...
Excomungamos todos os “paraísos fiscais”, onde o trabalho da imensa multidão anônima se converte em ouro, em dólares e em capital para uso de poucos...
Excomungamos o sistema capitalista de produção e sua filosofia liberal que, ao longo da história, se nutre da exploração dos recursos naturais, do trabalho humano e do patrimônio cultural dos povos...
Excomungamos todos aqueles que acumulam fazenda sobre fazenda, casa sobre casa, criando imensos latifúndios improdutivos ou mansões vazias, ao lado de milhões de pessoas famintas e sem terra e sem teto...
Excomungamos os responsáveis pelos assassinatos no campo e na cidade, não somente os que empunham a arma do crime, mas com maior razão os que pagam para matar...
Excomungamos todos os políticos que, apoiados pelo voto popular, usam do poder em benefício próprio e de seus apadrinhados, traindo aqueles que o elegeram e corrompendo os canais da participação popular...
Excomungamos todo Estado que alimenta um exército de soldados e burocratas e, ao mesmo tempo, deixa cada vez mais precários os serviços públicos, substituindo-os com políticas compensatórias...
Excomungamos todos os traficantes de droga, de pessoas humanas ou de órgãos humanos, que mercantilizam a vida e causam a destruição da família e de todos os laços fraternos de solidariedade...
Excomungamos todas as milícias paramilitares e a “banda podre” das polícias porque, a cada ano, ceifam a vida de milhares de jovens e adolescentes...
Excomungamos todos os tiranos que a ferro e fogo ainda reinam sobre a face da terra, assentados em tronos de ouro, construídos com o sangue, o suor e as lágrimas de seus súditos...
Excomungamos todos os mega-projetos, agro e hidro negócios, que devastam a natureza, contaminam o ar e as águas e, no afã de acumular poder e riqueza, reduzem drasticamente a biodiversidade sobre o planeta Terra...
Excomungamos todos os pedófilos, estupradores, sequestradores e seus cúmplices que não só escandalizam os inocentes, mas os convertem em objeto de prazer e de lucro...
Excomungamos a violência do homem sobre a mulher e as crianças, não raro encoberta pela inviolabilidade do lar e da família e que, aos milhões, esconde hematomas, cicatrizes e traumas sem remédio...
Excomungamos os que fazem de seus carros uma arma que fere, mutila e mata e que seguem impunes pelas ruas com suas máquinas velozes e letais...
Excomungamos todo tipo de exploração do trabalho humano, transformando mulheres e homens em peças descartáveis de uma engrenagem que se alimenta de carne humana...
Excomungamos todo sistema prisional que, pela superlotação, pelos abusos e pela tortura, avilta a pessoa humana e faz da prisão uma verdadeira escola do crime...
Excomungamos todas injustiças e assimetrias realizadas em nome da “democracia liberal”, pois a história tem sido testemunha de que essas duas expressões são incompatíveis...

quarta-feira, 4 de março de 2009

A paz é fruto da justiça

A paz é fruto da justiça. E a justiça, em que solo brota? Somente naquele solo raro e fértil chamado caridade é que ela germina. E esse solo chamado caridade, onde encontramos? Podemos achá-lo nos locais mais diversos, mas sobretudo numa ilha chamada cristianismo. Se navergarmos um pouco acharemos várias ilhas com esse nome, umas maiores, outras menores, umas feias, outras bonitas. Às vezes, em razão do grande número, até jogamos nossa âncora em algumas delas, mas depois de um passeio no litoral vemos não ser a verdadeira ilha cristiânica.
A CNBB com mais uma capanha da fraternidade provou ser um pedacinho da verdadeira ilha, apesar de hoje isolada. A CNBB é um dos poucos redutos do cristianismo libertador, aquele nascido do Concílio Vaticano II e que procurou a radicalidade de Cristo. Aquele Cristo que quando perguntado sobre qual era o maior mandamento respondeu que haviam dois, amar a Deus sobre todas as coisas e a teu irmão como a ti mesmo (Mc 12, 28-34).
Infelizmente a igreja hoje em sua maioria é refém desse sistema individualista, a qual ha um cultivo exagerado do "EU", esquecendo-se do ele, do nós. Vive-se um cristianismo superficial e pela metade.
Esse cena me chamou a atenção. Acima a prescrição pela justiça. Abaixo a injustiça materializada . O conflito entre duas igrejas. Uma que ama, a outra que se ama. Fico imaginando se isso aconteceria numa igreja de Dom Helder, de Dom Pedro Casaldáliga, de Oscar Romero....
Busca-se tanto a satisfação pessoal que não ligamos para as pessoas que ficaram pelo caminho, pior, para as que nem chagaram a levantar-se para caminhar.
Mas a utopia vive, pois Cristo vive. Meu pastor se fez cordeiro, sevidor se fez meu rei (Dom Pedro Casaldáliga).
Hoje Cristo encontrou sua igreja de portas fechas, em vez do sacrário seu peito teve como berço o chão frio de uma tarde chuvosa.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

É carnaval em mim - Frei Betto

Neste Carnaval anseio por folias interiores, de maravilhas indescritíveis, de sinuosos alaridos, de magnificências a dispensar ruídos e palavras. Quero toda a avenida regida por inequívoco silêncio, o baile imponderável em gestos rituais, a euforia estampada em cada sorriso. Rasgarei a fantasia de minhas pretensões e, despido de hipocrisias, deixarei meu eu mais solidário desfilar alegre pelas recônditas passarelas de minha alma. Fecharei os ouvidos à estridência dos apitos e, mente alerta, escutarei o ressoar melódico do mais íntimo de mim mesmo. Deixarei cair as máscaras do ego e, nas alamedas da transparência, farei desfilar, soberba, a penúria de minha condição humana. Aplaudirei os sambistas com fogo nos pés e as mulatas eletrizadas pelo ritmo da batucada. Mas não me deixarei arrastar pelo bloco da concupiscência. Inebriado pelo ritmo agônico da cuíca, serei o mais iconoclasta dos discípulos de Momo, recolhido ao vazio de minha própria imaginação. Neste Carnaval serei figurante na escola da irreverência e desfilarei pelas ruas meu incontido solipsismo, até cessar a bateria que faz dançar os fantasmas que me povoam. Envolto na desfantasia do real, atirarei confetes aos foliões e perseguirei os voos das serpentinas para que impregnem de colorido as diatribes de meu ceticismo. No estertor da madrugada, farei ébrias confidências à Colombina e, Arlequim apaixonado, ofertarei as pétalas que me recobrem o coração. Não porei olhos no desfile da insensatez, nem abrirei alas à luxúria do moralismo. Quando a porta-bandeira desfraldar encantos, ficarei ajoelhado na ala das baianas para reverenciar o Almirante Negro. Ao eco dos tamborins, esperarei baixar a sofreguidão que me assalta, buscarei a euforia do espírito no avesso de todas as minhas crenças, exibirei em carros alegóricos as íngremes ladeiras da montanha dos sete patamares. Darei vivas à vida severina, riscarei Pasárgada de meu mapa e, ainda que não me chame Raimundo, farei da rima solução de tantos impasses nesse devasso mundo. Expulsarei de meu camarote todos os incrédulos do Pai Nosso cegos aos direitos do pão deles. Revestido de inconclusas alegorias, sairei no cordão das premonições equivocadas e, vestido de Pierrô, aguardarei sentado na esquina que a noite se dissolva em epifânica aurora. Ao passar o corso da incompletude, abrirei as gaiolas da compaixão para ver o céu coberto pela revoada de anjos. Trocarei as marchinhas por aleluias e encharcarei de perfume os monges voláteis incrustados em minhas imprudências. Olhos fixos no esplendor das batucadas siderais, contemplarei o desfile fulgurante dos astros na Via Láctea. Verei o sol, mestre-sala, inflamar-se rubro à dança elíptica da cabrocha Terra. Se Deus der as caras, festejarei a beatífica apoteose. No cortejo dos Filhos de Gandhy, evocarei os orixás de todas as crenças para que a paz se irradie sobeja. Do alto do trio elétrico, puxarei o canto devocional de quem faz da vida a arte de semear estrelas. Entoado o alusivo, darei o grito da paz, pronto a fazer da comissão de frente o prenúncio do inefável. No reverso do verso, cunharei promissoras notícias e, no quesito harmonia, farei a víbora e o cordeiro beberem da mesma fonte. Meu enredo terá a simplicidade de um haicai, a imponência de um poema épico, a beleza das histórias recontadas às crianças. De adereços, o mínimo: a felicidade de quem pisa os astros distraído. Farei da nudez a mais pura revelação de todas as virtudes; assim, ninguém terá vergonha de mostrar o que Deus não teve de criar, e a culpa será redimida pelo amor infindo. A rainha da bateria virá tão bela quanto uma vitória-régia pousada numa lagoa despudoramente límpida. Sua beleza interior suscitará assombro. A evolução da escola culminará em revolução: a fantasia se fará realidade assim como o sertão há de vir amar e o mar de ser tão pellegrinamente pão do espírito. Neste Carnaval não haverei de me embriagar de etílicos prazeres nem me deixarei arrastar pelos clóvis a disseminar o medo entre alegrias. Irei aos bailes rituais e me submeterei às libações subjetivas, ofertarei ao Mistério cálices de clarividências e iluminuras gravadas em hóstias. Enclausurado na comunhão trinitária, ingressarei na festa que se faz de fé e na qual toda esperança extravasa no amor que não conhece dor. Então a palavra se fará verbo, o verbo, carne, e a carne será transubstanciada em festival perene - Carnaval

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Carnaval espiritual - Frei Betto

Chega o Carnaval e, com ele, a tristeza de palhaço que vê o circo pegar fogo. Fico surdo aos tamborins, cego à desnudez das mulheres e de nariz tapado ao cheiro ácido do suor quente. É outro o Carnaval que tanto anseio. Não o de salões abarrotados de gritos desconexos, nem desfiles que disfarçam de luxo a indigência do povo. Quero o rei Momo premiando o meu país de farturas e o corso da alegria atravessando as ruas dos meus passos. Não irei a bailes ébrios de álcool, nem me atarei a cordões que me algemam a liberdade. A mim pouco importa que, no Carnaval, homens se fantasiem de mulheres e mulheres vistam-se como homens. O que ambiciono é mais ousado: virar-me pelo avesso, trazer à tona aquele que sou e não tenho sido, travestir-me de mim mesmo, da minha face mais real e que, no entanto, trago mascarada nos demais dias do ano. É a loucura, essa loucura do sopro divino do qual sou feito. É ela que pretendo expor nas passarelas, nu, sem fantasias, puro como o mais belo dos anjos. Então, voarei alucinado pelas avenidas e, ao aterrissar no sambódromo, provocarei um silêncio reverencial, aquela suspensão de todo respirar que só as epifanias suscitam. A multidão em delírio aplaudirá o próprio êxtase, embriagada de plenitudes. Porta-bandeira atrevido, exibirei na escola de samba uma por uma de minhas quimeras, tão palpáveis quanto o amor que dói no peito. Rasgarei a minha fantasia e, com os trapos, tecerei um tapete de utopias, sobre o qual dançarei o mais ousado dos frevos, até que amanheça em minha esperança. Quero é festa, muita festa, dançando no cordão de madrugadas de silêncio, nas quais nem respiração se escuta, só o ritmo imponderável do mistério

domingo, 11 de janeiro de 2009

Nosso Patriotismo

Uma matéria que vi na televisão me fez refletir, ela relatava acerca de uma proposta de um velho sociólogo, aqueles com barba grande e cara de intelectual, de mudar a bandeira brasileira. De início achei impossível tal idéia, ora, mudar a bandeira brasileira, nosso maior símbolo de patriotismo? Mas depois vi que tinha sentido essa idéia aparentemente louca. Explicava ele que quando da criação da bandeira, lá pelos anos de 1889, ela representava as características de nosso país, o que hoje, segundo ele, ela já não o faz, por isso a necessidade de mudança. Todavia, para evitar a reação dos mais conservadores, a mudança proposta não seria total, permaneceria o formato original da bandeira, haveria apenas pequenas mudanças para adaptá-la aos dias atuais. As mudanças se iniciariam no grande retângulo que é preenchido de verde. Este retângulo outrora representava nossas florestas. Pois bem, em vez de todo verde como foi criado, o retângulo passaria a ter apenas manchas verdes, já que hoje no Brasil de verde mesmo só a bandeira e o interior das cuecas de nossos parlamentares. As florestas brasileiras que ainda não desapareceram já estão a caminho. Dizia ele que o verde da bandeira representava a Mata Atlântica, que começou a ser massacrada no começo da colonização pela exploração de madeira, depois tendo de dar lugar as plantações de cana-de-açúcar e café, e agora, em seus últimos suspiros de vida, ela tem que disputar espaço com os edifícios que hoje estão no lugar onde antes eram imensas árvores centenárias, derrubadas em razão da especulação imobiliária. Afirmou ele ainda que o verde representava as Araucárias do sul do país que transformaram-se em madeira para móveis. O verde simbolizava a Mata Amazônica, que a cada dia tem o seu tamanho diminuído, seja pela exploração ilegal de madeira, seja para dar lugar a imensos latifúndios e à criação extensiva de gado. Ele me convenceu que não tinha sentido, portanto, de nossa bandeira ter um retângulo completamente verde se essa já não era a nossa realidade. A segunda mudança seria no losango amarelo. Ele representava as nossas riquezas minerais. Afirmava o sociólogo que há tempos não possuímos mais essas riquezas minerais, já que teriam sido entregues por completo aos portugueses quando da nossa colonização. O brilho do ouro que cegou a tantos. Além do mais, as riquezas que nosso país possui está concentrada nas mãos de uma pequena burguesia sanguessuga, não tendo sentido que a pintura continue uniforme como é hoje. De acordo com a nova proposta o amarelo ficaria apenas nos cantos do losango para representar assim a nossa má distribuição de renda, onde a maioria nada tem. A última mudança seria no círculo azul que representa nossos céus. O círculo passaria a ter pontos pretos em seu interior. Ora, já que o círculo representa nossos céus, devemos também representar a poluição que neles se encontram. Nas grandes cidades já não se vê mais o céu azul, nas manhãs vê-se apenas o cinza. O crescente número de veículos nas ruas e com eles os gases que são liberados dão uma nova cor aos nossos céus. Ficariam muito mais condizentes com a realidade os pontos pretos no globo azul. As mudanças se encerrariam aí, pois o resto está de acordo com a realidade do país. As estrelas que representam nossos estados e distrito federal espelham a realidade, estão elas separadas, sem nenhuma unidade, iguais a nossos estados membros, cada um buscando seu próprio brilho. Na bandeira nacional não há nada mais atual do que a “ordem e progresso” estampada. De origem positivista, quer dizer em outras palavras “povo quieto para que o país cresça”. Povo quieto, alienado, alheio a realidade. Atualíssima. Como diria Dom Pedro Casaldáliga, “chamo a ordem de mal e o progresso de mentira”. Essas mudanças, no entanto, não passarão deste texto, primeiro porque o velho sociólogo e sua proposta nunca existiram. Este é o país do faz de conta, onde fingi-se tudo, até as reportagens. Segundo porque as mudanças esbarrariam em um falso patriotismo. Admira-me o nosso amor à pátria, a defesa de nossa bandeira me deixa fascinado, fascinado por tamanha hipocrisia, uma vez que o nosso patriotismo se resume à bandeira nacional e, claro, ao futebol em tempos de copa do mundo. Vi uma matéria, essa sim eu vi mesmo, onde uma mulher seria processada por posar nua usando como adereço a bandeira nacional. Patriotismo mentiroso, esse é o nosso. Nossas florestas estão desaparecendo e com elas toda a sua biodiversidade, chegando ao ponto de outras nações sugerirem a internacionalização da Amazônia. Temos um dos piores índices de distribuição de renda do mundo, perdendo apenas para os países da África degradados pela guerra. Raros são os rios que em contato com a “civilização” ainda não estão poluídos. Não obstante continuamos ainda preocupados com a bandeira, uma bandeira que hoje se tornou mentirosa. Temos um patriotismo que não vê a miséria do país, que não vê a opressão de seu povo. É hora de revermos nosso patriotismo, revermos de que realmente podemos nos orgulhar e onde se está precisando de uma reforma verdadeiramente patriótica.
Será que apenas quando for derrubada a última árvore, poluído o último rio, morto o último peixe, é que o homem vai perceber que não poder comer dinheiro?

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Sementes de girassol, Frei Betto (adaptado)

Neste ano, fecharei a minha caixa de Pandora e farei passarinhar todos os bons propósitos que desafiam a minha fé. Recolherei num jardim de tulipas essa tristeza d'alma que definha o meu ego arrastado pela vaidade.
Neste ano, soterrarei de perdões o meu mal-querer e de afagos a sórdida tendência de apostar na desgraça alheia. Erguerei a minha taça à vitória do outro e brindarei de louvores as conquistas dos que invadem a minha reserva de caça. Serei dom e não dor. Neste ano, fecharei as asas da ambição e, vazio de desejos, cavarei túneis no mais profundo de mim mesmo para deixar fluir as águas da plenitude. Neste ano, desviarei o olhar da lascívia que esgarça o meu espírito e os ouvidos aos tambores que me impedem de dançar na contramão. Não buscarei senão os odores suaves da brisa matinal e darei ao meu paladar o que amarga a língua e adoça o espírito. Neste ano, porei em prática sábias lições de vida: pão que se guarda endurece o coração; a cabeça pensa onde os pés pisam; o contrário do medo não é a coragem, é a fé. Sairei à rua repleto de silêncio, grávido do ser que me transfigura em morada divina. Neste ano, segredarei aos peregrinos os três aforismos de meu bem-viver: Deus tem sabor de justiça; a vida trafega a bordo do paradoxo; a morte é verbo e não se conjuga no presente, é sempre pretérito ou futuro. Neste ano, espalharei em meu peito sementes de girassol e cobrirei a cabeça com ervas aromáticas, para que a minha pele transpire luz e a minha boca profira perfumes. Não me privarei de suculentas alegrias e só darei a meu corpo o que empanturra o espírito. Neste ano, cultivarei cada um de meus cabelos brancos, modelarei de gorduras a flacidez de minhas carnes e preservarei cioso as rugas que maquiam de sabedoria o meu rosto. Serei belo como o tronco nodoso de uma velha castanheira que, retorcida de braços, abraça o Sol para em seus pés irradiar sombras. Neste ano, tratarei o semelhante com a reverência dos anjos e lavarei as portas de minha cidade para acolher em festa os que trazem boas novas. No contorno dos dias, amarrarei fitas brancas e escovarei a boca da noite até limpar a garganta de sonâmbulas aflições. Neste ano, não permitirei à língua servir de passarela ao mal-dizer, nem darei ouvidos a quem insiste em violar meu silêncio. Voarei sereno como os albatrozes que, todas as manhãs, impedem que o fragor das ondas fira a pele porosa das praias. Neste ano, não me deixarei iludir pelos profetas da desgraça, nem me hipnotizar pelos que pincelam de cores vivas os cemitérios. Ficarei atento ao olhar perplexo cravado no rosto encardido dos que suplicam uma côdea de pão e um gole de paz. Neste ano, trocarei minhas horas preciosas por horas ociosas e, recostado num banco de parque, darei milho aos pombos e cantarei laudes com os mendigos que, deitados na grama, escarnecem da agonia do tempo. Banharei a minha pele na lagoa pontilhada de moedas faiscantes de prata e, boca aberta sob o chafariz, beberei até embriagar-me de insensatez. Neste ano, violarei todas as regras da civilidade torpe que me engravata de cabrestos e rasgarei as etiquetas que me fazem perder horas em cuidados supérfluos. Arrancarei do pulso as algemas do relógio que me escravizam ao ritmo implacável de minutos e segundos. Neste ano, serei irresponsavelmente feliz, liberto dessa onipotência que recobre de fúria a minha excessiva fragilidade. Confessarei a mim mesmo os meus pecados e, crucificado numa roda gigante, ressuscitarei com a inocência das crianças que sorriem prenhes de vertigens. Neste ano, serei cidadão de um país governado por um cavaleiro que chegue montado num burrico e tenha as mãos calosas como quem cavou as entranhas da terra. Não darei lugar aos príncipes revestidos de palavras vãs, nem porei a minha confiança nos arautos surdos ao clamor dos desvalidos. Neste ano, farei de Deus o meu pai e o meu pão, e abrirei em laços o meu abraço, até transmutar solitários em solidários. Amarei sobre todas as coisas, para que a minha riqueza, despojada de bens, seja farta em afetos. Fecharei os olhos para ver melhor e, ao crepúsculo, serei consumido e consumado pelas chamas que ardem no lado avesso do meu ser.